Tese: precisamos de política, muita! Sei que contrario quem detesta política, coisa suja, de bandido.
Mas acho que essa ideia mudou, considerando sobretudo o Vem Pra Rua e o MBL a partir de 2013. O “povo” participou para cassar Dilma, botar Michel Temer no governo e eleger Bolsonaro. Os últimos quatro anos mostraram um pessoal ativista, aguerrido, politizado. Dos dois lados: contra e a favor, fazendo política o tempo todo, de crianças a aposentados.
Gente que nunca opinou – “tanto faz A ou B, mesma coisa” – de repente se tornou patriota, interessada nos rumos do país, quem governa, manda no orçamento, faz leis (regras, cerimonial). Preocupa-se com a lisura das eleições, contesta urnas, exige punição de corruptos, define os do bem e os do mal, quem precisa ser metralhado ou eleito, etc. Gente classes C-D-E! Porque B e A média e alta sempre opinaram! Para a direita, claro, lado “certo”, dos mandantes, e com todos os recursos de mídia, rádio-tevê-jornal-dinheiro. Essa gente faz política dia e noite, embora, por conveniência, espalhe a ideia de que política não presta.
A novidade está aí: agora presta. Todo mundo “politizado” – para quem antes não estava “nem aí” – é progresso notável. Pode-se dizer que graças ao zape, iutube, instagran, feice! Vídeos curtos ao alcance de todos, com informações impactantes, ninguém sabe se mentira ou não. Pouco importa! Importante é a sensação de “estar por dentro”, “saber das coisas”, “conhecer a verdade”: agora sim, posso escolher os melhores políticos para governar.
Há aí um profundo valor epistemológico. E neste início de ano, governo novo, mudança de chefias, o momento é oportuno para debater o assunto. Reza o dicionário: “política” = arte de governar. “Governar” = dirigir, dar rumo, colocar regras, definir o cerimonial. Confúcio, sábio chinês, ensina: “Se não estudares poesia, tua linguagem jamais será polida”. Linguagem polida = capacidade de pensar e expressar o que pensa, receber os pensamentos dos outros, coincidentes com os meus ou não, entender o que falam e escrevem. Linguagem não-polida = limitada, aprende-se em casa e na rua; bobinha, infantil, sujeita a manipulações.
Segunda lição de Confúcio: “Se não estudares o cerimonial, não terás um guia para a tua conduta”. Cerimonial = rito, atos organizados conforme o bom senso, respeito, simplicidade, inteligência. Governar é estabelecer este cerimonial = Constituição, leis! Para agradar a todos é necessário fazer isso com “arte”: arte de governar = política.
O leitor vai concordar: não se vive na polis (cidade) sem governança. A começar por si mesmo. Quem não sabe se dá mal. Por exemplo: governar hábitos alimentares. É você que os deve estabelecer para que os alimentos lhe deem energia, saúde. Se deixar para marqueteiros, vai comer porcaria e prejudicar o organismo. Precisa saber governar suas relações com cônjuge, parentes, vizinhos, amigos, e com a maioria que nem conhece, bilhões. Para não se tornar chato, caloteiro, mentiroso, dedo-duro, explorador, mandão, fascista – precisa conhecer (e respeitar) o cerimonial.
Mas para chegar à condição de escolher o melhor governo – no plano pessoal, municipal, estadual, federal, internacional – vai depender de conhecimentos, escola, professores, livros, condições financeiras, etc. Governar a si mesmo já é complicado. Imagine governar cidades, estados, países! Precisa ter gente que sabe fazer política: escuta, tem paciência, não impõe, respeita opositores, convive com diferenças, desconfia de bajulador, prefere críticos, aceita perder, sabe esperar, não se julga deus, aprende com os erros, pede desculpas, chora com os sofredores, festeja com os humildes, não baixa a cabeça para arrogantes, prefere livros.
Se não souber essas coisas, o que acontece? Vai na base da porrada, grito, chicote, armas, ameaças, medo, guerra fria ou quente. O orçamento militar será de bilhões, e a educação, a cultura, o lazer: de miles. Acontece quando poucos se interessam por política, e a multidão deixa pra lá. Felizmente, agora todos sujam as mãos na política! Viva o progresso. E abaixo as ditaduras!
Fernando Pessoa escreveu o verso que uso como título: “pensar é estar doente dos olhos”. Claro, precisamos interpretar, ir além das linhas, tentar captar o aicebergue escondido no fundo das palavras.
Primeiro consideremos que Fernando Pessoa é um superpoeta, e que não está falando isso à toa. Tentemos, pois, extrair mais sentidos do verso. Descartemos logo a ideia de que está se fazendo de difícil propositalmente. Nada disso. O que ele mais deseja é comunicar-se conosco. Só que é impossível erguer a montanha afundada no oceano e colocá-la na superfície da água, onde podemos vê-la. O que aparece é mesmo a ponta, no caso, o verso: pensar é um indicador de doença das vistas, uma espécie de catarata, miopia ou estrabismo. Tudo, não se esqueça, em linguagem figurada.
Em outras palavras: o pensamento é como uma neblina, que impede ver as coisas como elas são, nítidas, como seriam percebidas por uma criança sem os conceitos e preconceitos, as opiniões, os ensinamentos, que lhes são repassados desde que nascem. E que, enfiados pelo seu ser em formação adentro, acabam virando a visão de mundo do adulto que ele será.
Vamos aos exemplos. Enfiam na sua cabeça que cubano não presta, é comunista, matador de criancinha. De repente, surge na sua frente um cubano. Você o olha desconfiado, principalmente quando ele o cumprimenta, educado, pede licença, lhe presta um favor, dois favores, dez, vinte favores. Trata-se de um cara sensacional, e você quase esquece sua origem cubana. Mas felizmente se lembra e aí o coloca no seu devido lugar: safado! Estar doente dos olhos é por aí.
Com essa ideia na cabeça é impossível ver com nitidez!
E quantas ideias como essa carregamos, e a elas damos o nome de pensamento?
Quer mais um exemplo? Observo a mãe com seu filho de dois anos. Ela tenta enfiar em sua boca uma colherada de arroz com feijão, pedacinho de carne, mas o garotinho sai correndo, ela vai atrás, carrega-o para a cadeira, nova tentativa, ele cospe, ela o sujiga, promete que vai ter sobremesa, ameaça, até que consegue abrir-lhe a boca e vazar adentro goela abaixo aquela substância nutritiva. Ah! Vitória.
Qual o pensamento que a conduz nessa tarefa desgastante para todos? Para o menino, para ela própria e para os que observam, às vezes pensando: mas que burrice! Por que não dá sossego para o coitado? Mas ela deve pensar: se não comer, adoece, pode até morrer. Não lhe ocorre considerar que o rebelde, que já comeu meia dúzia de bananas, pode estar com a barriga cheia.
Mais um exemplo? A moça quer fazer medicina. Donde veio esse pensamento, esse ideal? Ela desmaia quando vê sangue, detesta biologia e não quer saber de plantão. É que ouviu dizer que o salário é alto, em pouco tempo poderá comprar aquele carro, o status é tudo que deseja, e ela será bem sucedida. Tenta o vestibular, bomba! Uma vez, duas, três. Nessas alturas, já percebeu que não é tão fácil assim. Vem o desânimo, a frustração, a depressão. As ideias se embaralham. E agora?
Ora, continua Fernando Pessoa, “Para ver os campos e o rio / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e as flores / É preciso também não ter filosofia nenhuma “. Isto é: pensamentos. Tem jeito? Sim. segundo o poeta. E o mestre, que, procurado por um jovem que queria ser seu aluno, lhe ofereceu uma xícara, a qual foi enchendo de chá até derramar. O candidato a discípulo gritou: pare! O mestre explicou: se você quiser aprender comigo, esvazie a sua xícara. Isto é: limpe sua cabeça, jogue fora seus pensamentos.
Cabeça vazia, olho limpo. Fácil encontrar os caminhos da vida. Figuradamente!
Recebi um presente de Natal indesejado: um comunicado da SERASA, datado – que tristeza! – de 25 de dezembro, anunciando que a instituição TAL (não falarei o nome) iria me colocar num banco de dados negativo caso eu não pagasse R$31,06 no prazo de 10 dias. Embaixo, na última linha: “Essa informação também poderá ser visualizada pelo SPC'.
Pensei com meus botões: de onde esse banco (é o Banco XY) sacou esse débito? Talvez fosse uma nova taxa, dessas que estabelecimentos financeiros e comerciais criam para custear serviços de natureza variada. Sei lá, vamos supor: o biscoitinho do café do pessoal, um perfume no corredor para suavizar a espera nas filas, um conserto no carro do motorista, coisas difíceis de prever. Por isso mesmo: extras! Por outro lado, continuei o raciocínio: para cobrá-las não precisavam me acionar com o SERASA. Bastava extrair da minha conta, sob a qual têm absoluto controle. Quando aumentam, por exemplo, o valor de sua manutenção – sem me perguntar – eles cobram. Simplesmente!
Conclusão provisória: não devia ser taxa. Falta de saldo? Também não, porque o valor estava dentro de minhas possibilidades.
Continuei a leitura do comunicado e vi no item “natureza” que se tratava de cartão de crédito. Surpresa! Me senti como o ladrãozinho de frutas flagrado no quintal pelo proprietário, que foi logo perguntando: como você veio parar aqui? Uma rajada de vento me carregou. E por que apanhou essas frutas? Tive de me agarrar nelas para não ser levado para longe. E essas frutas na sua sacola? Ora, era o que eu estava pensando quando você apareceu.
Minha situação estava parecida, guardadas as diferenças. Fui flagrado tentando surrupiar de um pobre banco a quantia de 36 reais e 6 centavos devido a uma ventania que me colocou em situação constrangedora. Fossem mais delicados comigo, cliente de décadas, e me avisassem. Eu devolveria as frutas. Foi o que me passou pela cabeça.
Por uma razão até simples: nunca tive cartão de crédito. Nunca paguei nem comprei com cartão de crédito. Como poderia então entrar para a lista do SERASA e do SPC por causa de um cartão de crédito?
Fui perguntar à gerente, a mais próxima credora a quem tinha acesso.. Ela ao menos recebeu-me com um sorriso. que compensou os longos 30 minutos de espera. Pegou o papel, leu, perguntou o CPF, abriu meu dossiê, olhou, consultou, analisou, descobriu que, seis meses atrás, uma funcionária havia procurado contato comigo mas não conseguiu, e que não havia registro de ocorrências referentes a cartões de crédito.
Mas então? É o Sistema, ela explicou. O Sistema funciona assim. Perguntei se o caminho seria acionar a justiça contra o banco, que sujava meu nome de bom pagador. Ela novamente consultou e me deu o conselho: melhor pagar. Principalmente porque o Banco oferece uma promoção: em vez de 31,06, pague apenas 12,36.
Quer saber? Diante do Sistema, preferi enfrentar nova fila e pagar no caixa o valor da promoção. E ainda agradecer porque o Sistema não me cobrou 3 mil, ou 30. As frutas que nem experimentei ficaram mais baratas. Perguntei à gerente se poderia ter uma conversinha particular com esse Senhor Sistema, onde poderia encontrá-lo, qual seu endereço, telefone, emeio(sic). Impossível! Absolutamente sigiloso! O que se sabe é que Ele nos governa, e pronto.
Faz nossas cabeças de tal forma que agimos exatamente como ele manda.. Por exemplo: determina que pais e mães trabalhem tanto que quando os filhos aparecem, de vez em quando, querendo brincar, eles explicam: precisamos terminar este serviço, acabar este relatório, fazer tal TCC, ou atualizar as redes sociais.
Mas esta é outra rajada de vento muito bem analisada no filme “Coraline”, sucesso entre crianças mas que serve também para adultos, baseado no livro homônimo de Neil Gaiman, de 2002. É o Sistema. Conhece?
Duas garrafas de vinho na prateleira, uma com o nome x a 20 reais, e outra com o nome y a 90. Uma pessoa foi convidada a experimentar uma dose de cada garrafa. Lógico, ela gostou mais do vinho y, mais caro. Achou-o simplesmente divino, bebida de deuses. E, claro, desprezou o mais barato.
Acontece que tudo foi uma armação de um pesquisador científico. No caso, psicólogos, que procuram conhecer a fundo a mente humana. O experimento foi lembrado pelo jornalista Hélio Schwartsman em artigo de 4.08.2013, publicado na Folha de São Paulo. O vinho de ambas as garrafas é o mesmíssimo, da mesma safra e da mesma uva, retirado do mesmo barril. A diferença está no rótulo, e o marqueteiro cientista simplesmente colocou nomes e preços diferentes. A incauta pessoa que serviu de cobaia concluiu que o de 90 reais era o bom.
Caiu na esparrela? Sem dúvida. Vamos interpretar, na medida de um artigo como este, de curto espaço e para um leitor às vezes apressado.
A pessoa foi manipulada por algo exterior a ela, no caso o rótulo. Ela viu, leu, acreditou nas aparências, o que, a princípio, é o normal. Nada de errado. É assim que todos fazemos. Mas é fácil perceber que ficamos no prejuízo – no caso, de 70 reais, que é a diferença entre 90 e 20.
Aí mora o perigo e o problema a ser resolvido. A pessoa vítima da experiência acima representa todos nós, a humanidade. Ela foi vítima de sua própria inocência, da falta de senso crítico. E, ainda pior: da sua recusa em acreditar em si própria, nos seus sentidos, no seu paladar. Afinal, o vinho não mudou o gosto só por ter sido colocado em garrafas diferentes.
Podemos chamá-la de idiota? Ignorante? Supor que seja uma criança, fácil de enganar, ou um jovem inexperiente, sem noção das maldades do mundo, ou um indivíduo maduro, mas ignorante, que está precisando voltar à escola ou matricular-se num curso do tipo EAD (Ensino à distância)?
Sim. E a interpretação pode continuar. Esse experimento (do vinho) – tão simples, tão banal – ilumina todo o nosso sistema ocidental, moderno, de governança (aí incluindo as leis que fazemos, os executivos que elegemos para executá-las, os agentes da justiça que aceitamos para julgar se o fizeram da maneira legal e correta).
Somos governados por rótulos, que é tudo que vemos, lemos, ouvimos – nas garrafas de vinho, nos jornais, nas telas de tevê ou celular. Vamos ao exemplo, que é uma boa forma de fazer entender. Pregam na testa de alguém: “corrupto”. É suficiente para o excluirmos,vinho de 20 reais. Noutra testa, rotulamos: “caçador de marajás”. Pronto: é vinho de 90 reais,suficiente para gostarmos dele, como aliás a população brasileira o fez em 1989 votando em Collor. Elee a mídia que o apoiou foram espertos: manipularam o eleitorado e conseguiram vender o vinho que queriam.
Outro, espertíssimo, e certo da inclinação natural das pessoas em negar a si próprias e botar fé no que está fora, exterior, longe, coloca uma faixa em posição estratégica com os dizeres: “Deputado Tal, sempre junto com você. Feliz Natal”. Claro, ele está certo de que o eleitor acreditará, embora nunca tenha estado perto de nenhum morador da cidade, salvo alguns, os manipulantes.
Voltando ao experimento do início. O psicólogo pesquisador pode colocar vinhos diferentes nas duas garrafas. Num, um realmente bom, mas com o preço de 20 reais. E outro, péssimo, de 90. E agora? Você vai pagar 90 por uma porcaria? Ou terá o bom senso de avaliar por si mesmo e comprar barato um vinho ótimo?
Qual a saída? Existe há séculos – e é filosófica: conhecer-se a si mesmo. Assumir a sua pessoa, gostar de si, acreditar na sua capacidade, aperfeiçoá-la, levar o seu potencial ao máximo. Você terá, com certeza, um guia muito mais confiávelpara sua conduta
(Artigo em homenagem à Jakeline Borges de Souza, filósofa).
Aprendi a escrever cartinha para o Papai Noel. Aproximava-se o Natal, e irmãos e irmãs se envolviam com seus pedidos: carrinho, bola, boneca, bercinho de nenê, joguinho de dados. Ninguém queria presentes úteis como sapatos e roupas. Para sossego de papai e mamãe, duravam semanas esses preliminares redigindo os bilhetes endereçados ao bom velhinho. Chegado o grande dia, 24, a cartinha cuidadosamente dobrada ia para dentro do sapato, debaixo da cama. Sabíamos que Ele não iria falhar.
Acreditávamos nessa bela patacoada, invenção de algum esperto marqueteiro.
Nada contra! Faz parte da existência essa necessidade de engambelar e ser engambelado. Nem todos os lares cultivavam essa feiqueniu. Normal que os salários-mínimos, que não podiam bancar um Papai Noel comprando presentes para todo mundo, se contentassem com as campanhas – nem sempre havia – do Natal dos Pobres. Não alimentavam nos filhos as idéias de que alguém dotado de mágicos poderes, viajando pelo espaço numa carruagem puxada por renas voadoras, descesse pela chaminé com um saco de surpresas para satisfazer seus desejos.
O comércio, ao longo dos séculos, inventou outras datas para incrementar suas vendas: réveillon, dia das mães, pais, avós, namorados, funcionários, crianças. Mas nada que se iguala ao do aniversariante. Bilhões em todo o planeta comemorando o próprio nascimento e comprando freneticamente, para alegria dos empresários e tristeza dos ecologistas.
Parece que é da natureza humana essa inclinação para acreditar. Acreditamos, quando crianças, em fábulas, histórias da carochinha, de assombração. Adultos, continuamos a acreditar, na choradeira de uma atriz, que devíamos saber que está representando, mesmo assim ficamos com peninha dela. Oh, que sofrimento! Acreditamos nas promessas mais sem lógica, como a do candidato que quer promover a paz apontando arminhas e melhorar a vida de todos concentrando dinheiro nas bolsas de um por cento e dando liberdade ao resto para se lascar como quiser.
No fundo, não somos muito diferentes do Cândido da história do burro. O nome já está dizendo: “cândido”, inocente, ingênuo. Lá ia ele puxando seu asno, quando um jovem veio na surdina, desamarrou-o e levou-o embora, enquanto outro amarrou o braço com a corda, tomando seu lugar. Tudo tramóia entre os rapazes, que queriam ganhar dinheiro e fazer graça. Quando o proprietário se virou e viu, o moço o saudou com um louvado seja Deus, enfim estou desencantado!
E contou ao perplexo Cândido que o pai lhe jogara uma praga devido ao seu péssimo comportamento em casa e na escola: ele iria andar de quatro depois de lhe nascer um rabo e lhe crescerem as orelhas. O feitiço durou anos. E agora pedia desculpas pelo prejuízo. O prejudicado acreditou e se congratulou: maravilha! Despediram-se, depois de o rapaz pedir segredo. Não espalhasse a verdade (ora, a verdade!) sob risco de ele voltar ao encantamento.
Daí a dias, vai o Cândido comprar outro burro. Para o leitor que sabe da mentira, é fácil entender que o mesmo quadrúpede lá estava à venda. Os espertalhões o haviam passado adiante. Ao vê-lo, em momento algum teve um lampejo de crítica. Continuou acreditando na lógica: se o burro estava ali é porque o rapaz fizera novas trapalhadas e o pai repetira a dose. Não teve dúvidas. Chegou perto da orelha do bicho e cochichou: já te conheço, seu besta, outro que te compre!
Achamos graça, o que é sinal de saúde mental. Rimos, e rir de si indica que a inteligência funciona, apesar de mergulhada num mar de invenções, fantasias e mitos. Por mais que moralistas se empenhem em dizer a verdade e somente a verdade, continuaremos mentindo e trapaceando, até na hora em que o marido chega de madrugada, e a mulher pergunta onde estava, ele responde: visitando um amigo doente. E quem é o amigo? O cara estava tão mal que não me falou o nome.
Há mentiras boas. Muitas. Como a do dono da casa que lia o jornal quando apareceu um visitante. Recebeu-o com prazer, sentaram-se, começaram a conversar. De repente, entra o cachorro perguntando pelo jornal do dia. O homem o alcança na mesa e o entrega ao cão, que sai com ele na boca. Pasmo, o visitante olha, parece que aguardando uma explicação. Ela vem: Ora, não se espante, fala o anfitrião. Meu cachorro está acostumado a ver jornal, mas só lê os quadrinhos.
Há, porém, mentiras que causam miséria, guerras, mortes. Acreditar em Mamom é uma delas. São muitos os seus fiéis, principalmente bilionários, por sorte apenas 200, segundo recente edição da revista Forbes. O problema é que, mesmo poucos, eles dominam a mídia, as redes sociais, o congresso, as instituições, tornando-se capazes de grandes estragos, como destruir florestas e, pior, a inteligência das multidões, cujo senso crítico vai a zero. Tanto é que passam a acreditar em mitos e abobrinhas. (Para quem não sabe, Mamom é dinheiro.)
São lindas, cheirosas, agradáveis, aliviam o incômodo do calor, entram com sua quota na produção de chuvas, controlam o clima, as estações, preservam as nascentes, acolhem os passarinhos, dão flores, frutos. E outras coisas.
Há cidades que não valorizam. Você anda pelas ruas, avenidas, praças, e só vê casas, prédios, asfalto, cimento. Procura, no mormaço do sol do meio-dia, alguma sombra para estacionar seu carro. Não encontra. O jeito é conformar-se com o aquecimento global. Quando voltar, daí uma hora ou duas, encontrará um calor de mais de 40 graus. Ao entrar, parece que entrou numa churrasqueira.
Mas São Gotardo não é assim. Aos poucos, ruas, praças, avenidas vão se enchendo de resedás, quaresmeiras, calistemos, espirradeiras, jacarandás mimosos, ipês de todas as cores. Quando florescem, são uma festa para os olhos. Ao redor, sente-se o perfume que espalham, pedindo para serem cheiradas e amadas. Com temperaturas altas, num céu sem nuvens, com o sol a todo gás, nada melhor do que uma sombra debaixo de uma árvore.
Morar numa cidade assim é um luxo para as pessoas que nela circulam em seus veículos ou a pé. Uma prova de que elas merecem, pois árvores só existem se há quem as plante, regue, adube, pode, cuide e proteja. Se a população as adotar. Isso demora mais do que para construir um prédio.
Uma cidade arborizada serve também – como uma espécie de benéfico efeito colateral – de exemplo para outras e para o mundo. Porque a grande demanda de nosso tempo é de árvores. Há um apelo coletivo e universal para que, não só salvemos nossas matas, a floresta amazônica, nossas pequenas reservas nas fazendas e nos sítios, mas para que plantemos mais. A cultura de desmatar, derrubar, limpar o terreno, normal há meio século, está mudando, mas há muito ainda que avançar.
Sabemos hoje, graças à ciência mas também aos nossos avós, que antigamente chovia muito, o frio exigia blusas o dia inteiro, a água jorrava da terra em abundância. Apesar de não existir meteorologia, o roceiro sabia bem quando São Pedro ia abrir as torneirinhas. Em agosto preparava a terra para o plantio, aproveitando as primeiras chuvas. Colhia o milho verde em novembro, fazia pamonha no natal, enquanto as águas caíam dia e noite. Começavam em outubro, davam uma paradinha em janeiro para o recesso do veranico, voltavam de novo e seguiam até a cheia de São José, em 19 de março. Nascia olho d´água por todo lado, para a alegria das crianças. O corguinho Confusão virava um rio, o Borrachudo ficava perigoso para atravessar. O Indaiá então, nem se fala.
Não é difícil saber disso. Os jovens, que já nasceram no seco e com aquecimento global, não sabem. Mas podem ficar sabendo com os avós. São eles, os jovens, os maiores interessados em preservar o ambiente, uma vez que têm muito futuro. Semear árvores é uma forma de garantir um ambiente fresco, bom para plantas e pessoas. Podem começar adotando uma árvore.
Que significa adotar uma árvore? Primeiramente, cuidar dela. Conhecer suas necessidades, que são poucas e simples, fáceis de satisfazer: água, adubo, poda da forma correta, proibido randape (round up), e mais nada. E ficar amigo dela de verdade, olhando-a, curtindo a sua sombra, estacionando o seu carro, sentindo o seu perfume.
Quanto às folhas que caem no chão, não fique xingando, dizendo que é sujeira. Olhe para elas como se fossem um tapete para você passar. Melhor folhas do que vidro, copos plásticos, latas, tampas de refri, e outros objetos inadequadamente descartados. As folhas são da Natureza. É só varrê-las, vendo nelas apenas o que são: folhas. Que vão se dissolver na terra, virar adubo, para alimentar novas plantas, que vão produzir flores e frutos. Fazem parte do ciclo.
Os patrocinadores de nossas árvores são as empresas, que aderem cada vez mais à idéia, e a Prefeitura, através da Leidiane, secretária do Meio Ambiente. Mas há também pessoas como a Maristela Prados, que ajudou a tornar agradável a rua Major Olímpio Franco, uma ruinha que num só quarteirão conta com 19 árvores lindas porque todos os moradores as adotaram. E como o Luís Sérgio Soares e irmãos, que criaram uma forma carinhosa de homenagear pessoas queridas da família: plantar árvores em volta da casa onde mora dona Adélia e em outros lugares.
Como diz um ditado de muita sabedoria: crie um filho, escreva um livro e plante uma árvore. Se você não pôde fazer os dois primeiros, faça o último. Já pensou São Gotardo com 30.000 novas árvores? Nosso oásis ficará melhor ainda. Boas mudas você encontra no Proman e no Viveiro do Cerrado.
Como trabalho há anos com jovens, posso dizer de experiência que os pais têm mais ou menos as mesmas preocupações quando o assunto é português, leitura, interpretação de texto, redação.
Sempre ouço mais ou menos o seguinte: meu filho está com dificuldade para interpretar. Não quer nada com leitura. Quando é obrigado a ler, exigência da escola, a mãe (ou o pai) fala: eu leio um pedaço, ele lê outro, se não for assim não vai. Não posso largar ele sozinho, não sai nada. Não pegou recuperação, mas ficou no limite. O pai acha que a mãe devia deixar o menino de lado, mesmo que tire zero, para aprender autonomia. Às vezes o problema é a letra. Ninguém lê, nem o dono da escrita. Ortografia é um desastre. Escreve oge, hontem, axo, abto, parece língua de internet. Por fim, resume dizendo que o filho detesta estudar, tem preguiça. Qual a minha opinião?
Eu costumava dar voltas para dizer o que hoje falo direto. O menino tem razão. Espantam-se. Como? Coloque-se no lugar dele. Há mil coisas melhores pra fazer: jogar bola, nadar, andar de bicicleta, correr, tomar sorvete, brincar, ver filme, para não falar nos mil joguinhos do celular. Estudar ocupa uma posição inferior nesse lista de possibilidades. Principalmente se tomarmos a palavra no sentido de ir à escola, inscrever-se em um curso, copiar e decorar. Porque, no dicionário, a palavra tem esses sentidos. Ora, existem outras coisas chatas, mas copiar e decorar é bem chato. E o que se faz (claro, tire as exceções) nas escolas? Está faltando uma pesquisa (talvez já exista) para botar no papel quantas horas são desperdiçadas com copiação e decoreba. Para não falar nos efeitos colaterais que isso provoca: desânimo, rebeldia, aversão pelo estudo, ódio pelo português, pela leitura, etc.
Mas a palavra “estudar” tem outros sentidos: exercitar a inteligência e o raciocínio para aprender, refletir, analisar com atenção. O alvo é o aprendizado. Estuda-se para aprender alguma coisa, adquirir conhecimentos e habilidades. Isso não é chato. Qualquer pessoa saudável da cabeça gosta de aprender. Se gosta, não há necessidade de impor. Ela vai procurar, por iniciativa própria ou influência (e não por imposição).
Quando isso acontece, tudo muda. Parece mágica. O menino vai correr atrás, deixar de fazer umas coisas (joguinhos, por exemplo) para fazer outras, pegar o livro, olhar no dicionário a palavra nova. Mais ou menos isso que pessoas com juízo esperam. E ele vai crescer feliz, aprender a ganhar dinheiro, e gastar bem, pagar as contas, respeitar os outros, coisas que os pais em geral sonham para os filhos.
Mas como essa mágica acontece? Na minha opinião, fundada na experiência de trinta anos, é através da linguagem. Há várias: matemática, placas de trânsito, Braille, código Morse, Libra. Mas falo de línguas como francês, alemão, inglês. No nosso caso: português. Ou seja: a mágica acontece quando a pessoa fica boa na língua em que nasceu. Aprende a ouvir e falar, ler e escrever com competência. (Quanto a “ficar bom em Português”, é polêmico. Merece artigo à parte. Mas adianto que não é exatamente conjugar verbos ou saber as funções do “que”, menos ainda regras de concordância e acentuação.)
Quando se é bom em Português, as coisas começam a clarear, a ficar mais fáceis. Para todos. Para os pais, que não vão mais ficar naquele estresse, fazendo tarefas que não são deles, e que terão mais tempo para uma saidinha despreocupada, confiantes de que o filho aprendeu autonomia e agora não precisa de pernas alheias para andar. Está livre para se atirar àquilo que ama. E a sociedade, como um todo, vai ficar mais harmonizada.
Entende agora por que amo ensinar Português? Como escreveu minha aluna Fernanda: abriu meus olhos. Não estou mais trombando nas coisas.
Quanto ao emocional, ansiedade, aflição? Nem fale. Matéria para outro artigo.
Vamos falar sobre incêndio, assunto do momento. A mata está pegando fogo. Muita gente preocupada, no Brasil e no mundo. Afinal a Amazônia é uma reserva florestal respeitável. São mais de 5 milhões de hectares de árvores, e debaixo delas vivem rios lindos, igarapés, onças, tamanduás, papagaios, grilos, formigas, além de ianomâmis, xavantes, índios que certamente têm a ver com aqueles tupiniquins e guaranis que moravam no litoral hoje conhecido como Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia. Lá vão 500 anos!
No entanto, não estão todos preocupados. Há também parte considerável de gente que comemora. Para eles o fogo não deixa de ser uma bênção, no sentido de que rapidinho libera uma enorme extensão de terras para plantio e pastagens, como se fazia antigamente. Imagine quanta soja, milho, arroz aquele mundão de hectares pode produzir, e quanto gado, filé, carne de primeira a exportar para a Europa e a China. Sem falar nos minérios: nióbio, urânio, tungstênio, sei lá o que pode haver naqueles ermos. Ficaremos ricos. E o Brasil finalmente deslanchará. De maneira que teremos que recorrer à palavra seguinte.
E falar de inserção. Uma leitora do jornal Daqui cobrou-me essa postura: um jornal não pode se omitir, tem que levantar as questões, informar, provocar o debate, pois assim é que surgem as idéias, luzes, para nos orientar a conduta mais adequada. O jornal, as rádios, a televisão, as escolas, instituições em geral, todos têm esse compromisso.
Afinal estamos inseridos na barca, juntos, e ela vai navegando no mar imenso. Se afundar, no mínimo todos molham. E quem está mais fraco ou não sabe nadar morre. Mas para introduzir a “consciência”, ocorreu-me uma comparação: ajuda a entender a relatividade das coisas. Einstein já demonstrou que tudo é relativo.
Imagine uma criancinha no berço. Ela está quietinha, mas acordada e atenta. Observa tudo: os barulhinhos naturais do ambiente, a voz da mamãe, os ruídos na cozinha, talheres, água escorrendo, o maninho falando sem parar. Se bate a fome, ela resmunga ou abre o bué, aparece um seio macio cheio de leite. Se incomodada com o xixi, avisa. Essa criancinha está inserida, e bem, no universo. Mas poderia não estar. Vamos simular assim. Ela chora com fome, não vem ninguém; tá com frio, idem; os barulhinhos tão leves são trocados por um sonzão horroroso, e que nunca pára; e não adianta esguelar. Quando a atendem, com maus modos e xingos, parece que foi uma eternidade. Agora ela está mal inserida.
O que isso significa? Que a qualidade da inserção não depende dela, mas de quem cuida, seja mãe ou babá. Vai depender da visão de mundo do cuidador. E aí entra a questão da consciência: afinal o que esse indivíduo pensa do mundo? Para ajudar a entender o sentido da palavra, consultemos o dicionário Aurélio: “consciência é o atributo altamente desenvolvido na espécie humana e que se define por uma oposição básica: é o atributo pelo qual o homem toma, em relação ao mundo, aquela distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos de integração”.
Um nível mais alto de integração seria o da criança bem atendida. Se mal, o nível é baixo. Por quê? Porque quem atende não possui esse “atributo altamente desenvolvido”. Não é capaz de tomar aquela distância – entre ela própria e a criança – que possibilita um atendimento de nível mais alto: mais empático, carinhoso, do tipo: não faça ao outro o que você não quer para si próprio. Portanto: não grite, troque a fralda, dê a comidinha do nenê. Não coloque seus interesses egoístas de ir pra frente do espelho verificar se sua sobrancelha ficou bonitinha, ou colocar a rede social em dia. Fique ligada na criança, insira-se em seu meio com qualidade. Sua responsabilidade é grande, porque o adulto que essa criança será depende do cuidado que ela está recebendo.
A floresta amazônica é a nossa criança. E tudo que está lá. Como vamos nos inserir na questão dos incêndios? Discutir quem botou fogo? As Ongs? Os índios? Quem sabe os próprios animais, desejosos de uma vida mais moderna e tecnológica? Os grileiros, posseiros, garimpeiros, fazendeiros de gado e soja? Quem sabe espiões de algum planeta inimigo, invejoso dessa nossa Terra azul e líquida?
Com um esforço de observação podemos atingir o nível de consciência do sábio hindu que se afastava do caminho por onde andava para não pisar nas formigas, ocupadas em se abastecer enquanto as chuvas não vinham. As formigas estão inseridas em seu meio com um grau de consciência, que às vezes os humanos acham que elas não têm. E não devem estar gostando desse fogaréu. Sem falar nas onças e nos índios, que afinal também são gente.
Há um ditado conhecido: a gente colhe o que planta. Claro, fácil entender. Plantou feijão, não vai nascer abóbora. Vai nascer feijão. Plantou ventos, colhe tempestades.
Aí já passamos para a linguagem figurada. “Ventos”, no caso, simboliza algo negativo, do tipo raiva, ódio, vingança, violência. “Tempestades” são problemas, dificuldades, sofrimento.
Não se sabe até que ponto isso pode ser verdadeiro, porque Jesus não era do tipo violento. No entanto, morreu de morte violenta, segundo a história. Mas há explicações para isso: é que ele, por sua mensagem de paz, incomodou os que adoram guerras.
Seu exemplo não anula a verdade do ditado: colhe-se o que se semeia.
E a humanidade, como um todo, pelo menos em nosso mundo mais conhecido – o chamado ocidental, cristão e marcado pela influência norte-americana de liberal-capitalismo – , tem colhido frutos preocupantes nos últimos 50 anos. Quais? Casos de depressão, autismo, esquizofrenia, dificuldades de relacionamento, déficits de atenção e hiperatividade, suicídios ou tentativas de suicídio e outros problemas mentais. E as vítimas preferidas têm sido os jovens.
Esses nomes usados por médicos podem ser melhor entendidos se usarmos uma linguagem do dia-a-dia: eles não conversam, não cumprimentam, não lhe dão um bom-dia, não colaboram, não são prestativos mas exigentes, se irritam quando não atendidos na hora, não se desgrudam do celular, não guardam a toalha, nem os sapatos, nem a mochila, não praticam exercícios físicos, ficam horas recolhidos em seus quartos. A lista vai longe.
São problemas que gostaríamos de não ter. Seria o caso de se perguntar: foram plantados? Quem os plantou? Como?
Um livro, pode-se dizer que recente pois sua primeira edição é de 2010, trata do assunto. Seu título em inglês é: Anatomy of an Epidemic: magic bullets, psychiatric drugs, and the atonishing rise of mental illness in America. Foi traduzido para o português com o título: “Anatomia de uma epidemia. Pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental”. Fácil comprá-lo pela internete.
O autor estuda os últimos cinqüenta anos de ciência psiquiátrica, e mostra como o uso imediato e exagerado de antidepressivos, antipsicóticos, ritalina, prozac, lítio, risperdal, e muitos outros neurolépticos, não melhorou a saúde mental dos pacientes, ao contrário piorou. Em seguida, vai à Finlândia e à Inglaterra conhecer experiências diferentes, e fica pasmo de descobrir um remédio barato, que existe há séculos, e que já era indicado pelos “pais da medicina”. Mas vou mantê-lo sob sigilo, para que o leitor preste atenção nos parágrafos seguintes. Ao final deste artigo, ficará sabendo.
Voltemos ao ditado do início: você colhe o que planta. Com nossos filhos, também é assim. Nos últimos cinqüenta anos, mudou muito a relação entre pais e filhos. Para se ter uma ideia: dona Diva lavou a roupa da patroa por décadas no tempo em que não existia máquina. Ela teve vários filhos. Todos foram criados, quando bebês, ao lado dela, enquanto fazia o serviço. Colocava o menino numa bacia, devidamente quentinha com cobertores. Quando chorava, ela estava ali, rente. Trocava fralda, dava de mamar, fazia um carinho. Nenhum estresse. Era assim.
O exemplo serve para se dar ideia do quanto mudou. Hoje mães e pais ficam pouco com os filhos. Não conversam com eles, não brincam, não os iniciam em atividades físicas, não os tiram dos quartos. Terceirizam, em geral, esses momentos tão importantes para a formação do adulto que eles serão um dia. Deixam com as babás, que nem sempre estão preparadas para essa função. Ou, certamente pior, com os programas de tevê, filmes, joguinhos, cuja qualidade nunca avaliaram (e às vezes nem têm condições de avaliar). E agora, mais recentemente, com o celular, que significa na verdade uma bomba atômica na mão de uma criancinha.
Agora que o espaço acabou, vamos ao segredo: sabe o que o autor do livro descobriu? Que os médicos vêm receitando exercícios físicos para seus pacientes com perturbações do tipo que citamos acima. Ginástica, caminhada, corrida, movimentos com braços e pernas, musculação, atividades braçais.
E sabe o que mais? Conversar, reunir a família, rir junto, contar casos, interagir. Dá pra você? Essas são sementes que dão bons frutos e que seria bom semear bastante.
Somos movidos por 4 tipos de alimentos. O primeiro é o arroz-feijão fácil de entender. Vamos chamá-lo de sólido, embora ele possa entrar pela boca em forma de leite, vitamina ou sopa. Equivale à gasolina: tanque vazio, carro não anda.
O segundo é o líquido, na verdade água, ou H2O, que pode se disfarçar como coca, guaraná, sprite, qualquer refrigerante. Se faltar, só sobra esqueleto.
O terceiro é o gasoso: ar, oxigênio. Sem ele, morre-se em minutos. Não o enxergamos como a uma comida no prato ou uma água no copo. Mas o sentimos na ventania, no mau cheiro, e com alguma experimentação científica podemos provar sua existência: como na água encanada que pára de correr porque “tem ar”.
Quanto ao último, o etéreo, merece análise à parte pois é mais difícil percebê-lo como alimento. E, para a saúde física e mental, é importante escolher o alimento certo.
Dos três primeiros, temos consciência clara da sua importância: damos dinheiro pelo sólido, menos pela água, e (por enquanto) nada pelo ar. Precisamos torcer para que as coisas continuem assim. Há cem anos, água era de graça. Hoje virou mercadoria – cada vez mais cara. Imagine daqui uns tempos pagar para respirar! Aliás, quem foge da cidade grande para o mato para respirar ar puro já está pagando a viagem e a pousada!
Mas e o etéreo? Onde encontrá-lo? Como demonstrar que existe?
Em primeiro lugar, seguindo a lógica: vive-se semanas sem o sólido; dias, sem o líquido; minutos, sem o gasoso. Então, na sequência, o tempo do etéreo é de segundos. Os três primeiros têm uma certa materialidade. É possível pesá-los, medi-los, engarrafá-los. Já o etéreo é imaterial. Poderíamos, na falta de melhor nome, chamá-lo de mental, ou espiritual, embora para demonstrar sua existência tenhamos que recorrer a palavras como formas, imagens, sensações, percepções.
Impossível viver sem enxergar formas e imagens, sem experimentar o frio e o calor, sem sentir os cheiros e os sabores, sem ouvir os sons, sem deixar-se afetar pelas percepções de tudo que acontece em volta. Se isso por alguma infelicidade acontecer, a vida cessa. Pode-se, por um acidente, perder por exemplo a visão. Deixar de ver as coisas. Mas o corpo desenvolve um mecanismo compensatório e passa a ouvir mais.
O fato é: se o máximo que conseguimos ficar sem esse alimento é de segundos, significa que estamos sempre sedentos dele, chamemo-lo etéreo, imaterial, espiritual, seja lá que nome se queira dar. Sedentos, sôfregos, famintos!
E aí mora o perigo! Quem está esfomeado come qualquer coisa. Porque não vão faltar os que saberão aproveitar dessa imensa fome para oferecer exatamente o alimento: imagens, cores, formas, música, filmes, propagandas, shows, concertos, jogos, espetáculos. E vão disputar sua atenção apelando a todos os recursos disponíveis.
São muitos. Desde os carros de som buzinando no seu ouvido: compre! compareça! você não pode perder! Até os outdoors, as faixas, os filmes do Capitão América: vinte e tantos, cheios de emoções, tiroteios, armas, acaba um, vem outro. Ou esses livros de 800 páginas, em que cada capítulo joga uma isca para o seguinte, numa sucessão de acontecimentos fantásticos que nunca acaba. Ou as celebridades que o convidam para serem seus seguidores nas redes, no instagram, no Faustão.
Outro perigo: quanto mais se ingere porcaria, mais predisposto se está para consumir mais. Ora, pensando na saúde, temos cuidado ao escolher a melhor comida, água sem poluição, ar limpo. Seria interessante termos também essa preocupação na hora de consumir os alimentos etéreos, mais sutis, mais difíceis de ver neles o perigo. Vagar por aí consumindo tudo que lhe oferecem na tevê, no netflix, no youtube, nas redes, nos outdoors, nas ruas, e até – convenhamos! – nas rodas de conversa, não faz bem ao corpo. Nem à cabeça! Comida ruim pode dar dor de barriga ou fazer de você um completo idiota.