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    Quarta, 18 Março 2020 20:51

    Pensar é estar doente dos olhos

    Fernando Pessoa escreveu o verso que uso como título: “pensar é estar doente dos olhos”. Claro, precisamos interpretar, ir além das linhas, tentar captar o aicebergue escondido no fundo das palavras.

    Primeiro consideremos que Fernando Pessoa é um superpoeta, e que não está falando isso à toa. Tentemos, pois, extrair mais sentidos do verso. Descartemos logo a ideia de que está se fazendo de difícil propositalmente. Nada disso. O que ele mais deseja é comunicar-se conosco. Só que é impossível erguer a montanha afundada no oceano e colocá-la na superfície da água, onde podemos vê-la. O que aparece é mesmo a ponta, no caso, o verso: pensar é um indicador de doença das vistas, uma espécie de catarata, miopia ou estrabismo. Tudo, não se esqueça, em linguagem figurada.

    Em outras palavras: o pensamento é como uma neblina, que impede ver as coisas como elas são, nítidas, como seriam percebidas por uma criança sem os conceitos e preconceitos, as opiniões, os ensinamentos, que lhes são repassados desde que nascem. E que, enfiados pelo seu ser em formação adentro, acabam virando a visão de mundo do adulto que ele será.

    Vamos aos exemplos. Enfiam na sua cabeça que cubano não presta, é comunista, matador de criancinha. De repente, surge na sua frente um cubano. Você o olha desconfiado, principalmente quando ele o cumprimenta, educado, pede licença, lhe presta um favor, dois favores, dez, vinte favores. Trata-se de um cara sensacional, e você quase esquece sua origem cubana. Mas felizmente se lembra e aí o coloca no seu devido lugar: safado! Estar doente dos olhos é por aí.

    Com essa ideia na cabeça é impossível ver com nitidez!

    E quantas ideias como essa carregamos, e a elas damos o nome de pensamento?

    Quer mais um exemplo? Observo a mãe com seu filho de dois anos. Ela tenta enfiar em sua boca uma colherada de arroz com feijão, pedacinho de carne, mas o garotinho sai correndo, ela vai atrás, carrega-o para a cadeira, nova tentativa, ele cospe, ela o sujiga, promete que vai ter sobremesa, ameaça, até que consegue abrir-lhe a boca e vazar adentro goela abaixo aquela substância nutritiva. Ah! Vitória.

    Qual o pensamento que a conduz nessa tarefa desgastante para todos? Para o menino, para ela própria e para os que observam, às vezes pensando: mas que burrice! Por que não dá sossego para o coitado? Mas ela deve pensar: se não comer, adoece, pode até morrer. Não lhe ocorre considerar que o rebelde, que já comeu meia dúzia de bananas, pode estar com a barriga cheia.

    Mais um exemplo? A moça quer fazer medicina. Donde veio esse pensamento, esse ideal? Ela desmaia quando vê sangue, detesta biologia e não quer saber de plantão. É que ouviu dizer que o salário é alto, em pouco tempo poderá comprar aquele carro, o status é tudo que deseja, e ela será bem sucedida. Tenta o vestibular, bomba! Uma vez, duas, três. Nessas alturas, já percebeu que não é tão fácil assim. Vem o desânimo, a frustração, a depressão. As ideias se embaralham. E agora?

    Ora, continua Fernando Pessoa, “Para ver os campos e o rio / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e as flores / É preciso também não ter filosofia nenhuma “. Isto é: pensamentos. Tem jeito? Sim. segundo o poeta. E o mestre, que, procurado por um jovem que queria ser seu aluno, lhe ofereceu uma xícara, a qual foi enchendo de chá até derramar. O candidato a discípulo gritou: pare! O mestre explicou: se você quiser aprender comigo, esvazie a sua xícara. Isto é: limpe sua cabeça, jogue fora seus pensamentos.

    Cabeça vazia, olho limpo. Fácil encontrar os caminhos da vida. Figuradamente!

     

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