(Este texto para o jornal DAQUI tem o propósito de registrar o momento histórico que vivemos no Brasil de 2022 em torno da querela das urnas eletrônicas.)
Pensar com a própria cabeça é difícil, por uma razão simples: mal nasce, o bebê é rodeado por adultos aflitos que não lhe dão trégua. Como pensam com cabeças alheias, acham que o filho deve ser igual. E tem início o que entendem por educação.
Primeiro lhe passam a língua, o montão de palavras e frases feitas – repertório limitado que ouviram, decoraram, acumularam. Junto com gestos, trejeitos, tons de voz que podem variar do gritado ao sussurrado, do estridente ao suave. Daí os tiques e sotaques dos quais é difícil se livrar. Com a linguagem – espécie de copo, recipiente onde serão colocados os conteúdos – vai junto aquilo que a criança será: ideias, opiniões, ideologias, preferências que os adultos em volta lhe enfiaram na cuca.
Cada um tem os adultos que a sorte lhe deu. Pode ser papai e mamãe, e aí seria Sorte Grande porque – por instintos que todo animal tem para proteger suas crias – pais e mães têm todo o interesse em proteger filhos contra estupradores de corpo e alma. Mas pode ser alguém com outros intuitos: a babá, o vizinho da mesma idade ou mais velho, e – graças às tecnologias – faustões, ratinhos, filmes, marqueteiros.
E os especialistas! Que aparecem na idade marcada, legalizados pelo sistema para formar ou deformar as mentes dos educandos, coisa avassaladora bem explicada por Pink Floyd em “The Wall” (O Muro); por James Joyce em “Retrato do artista quando jovem”; e, mais recente, pela Netflix: “Rezar e Obedecer” e “Colônia Dignidade”. Desse material, concluí que especialistas surgem como certos tipos de professores e catequistas, os quais – com o poderoso método “copiar-repetir-decorar” – arrancam pela raiz a capacidade inata de pensar que todos têm.
Desculpe usar a artilharia pesada do parágrafo acima (em negrito). Fiz isso para impactar o leitor e convidá-lo a conferir. Para não desanimá-lo, conto a historinha abaixo.
Aconteceu há séculos. O professor convidou todos do povoado para uma festa. Estranharam! O que deu na cabeça dele, que nunca foi de festas? Celebrar sua vida feliz de 100 anos? Não! Homenagear seu Mestre, morto há tempos. Surpresa maior! A vida inteira o Senhor nos ensinou a pensar com a própria cabeça e andar nas próprias pernas! Agora nos diz que seguia um Mestre!? Não é contradição? Do alto de seus 99 anos, ele explicou: é um paradoxo; segui o Mestre que me ensinou a pensar com a minha cabeça e andar nas minhas pernas. Aprendi a não seguir ninguém, só a mim mesmo.
Parece difícil, e às vezes é (até impossível), porque não faltam os alfaiates safados da história do rei vaidoso para inventar roupas invisíveis e explorar a burrice humana dizendo: idiota não consegue ver a roupa! Você, para dar de inteligente, vê! O rei peladão e você jura que não: que ele está vestido! Idiota não admite a própria burrice.
Já o inteligente, sim: é possível algum safado ter lhe contado mentira. Prefere verificar por si mesmo: olhar bem, escutar, cheirar, lamber, apalpar. As percepções, naturalmente, vão para o intelecto. “Nada está na mente que não passe antes pelos sentidos”, diz o filósofo. Coisa antiga, boa e fácil! Dá prazer e alegria. Evita brigas.
Mas aí entra a educação ministrada pelos aflitos (em minoria, felizmente, mas poderosos), entupindo os intelectos de ideias, ideologias, convicções, opiniões, decorebas. A realidade vira mundo virtual e paralelo de doideira total. Prefiro ficar com o poeta Fernando Pessoa: “O que penso eu do Mundo? Sei lá! Se eu adoecesse pensaria nisso”.