Convém alertar o incauto leitor sobre os incontornáveis riscos e armadilhas que circundam a narrativa que se segue: de tomar fatos ao pé da letra ou ainda de relegá-la ao puro e simples campo do exotismo ou folclore. Há que se desarmar ainda das convicções e julgamentos morais que emolduram com o verniz da hipocrisia os comportamentos e condutas tidos como aceitáveis ou recomendáveis pelas normas sociais. Ainda que soe simplória, absurda ou inverossímil a história que vamos contar, poderíamos citar dezenas de exemplos do dia a dia que atestam ser muito mais comum do que parece a simbiótica relação entre o amor e os negócios, entre as relações pessoais e os interesses ditados pelas leis de mercado.
O absurdo e o inolvidável caminham com desenvoltura tanto na ficção como na realidade, e entre uma e outra, a distância que as separa não vai além de uma braçada.
Isto posto, sigamos em frente, com destemor e espíritos desarmados.
Há pouco mais de 20 anos, por ali, nas cercanias do distrito de Vila Funchal, um estranho caso começou a circular de boca em boca como notícia de primeira página. Foi contada e re-contada em cada canto de cozinha, sala, esquina ou porta de boteco. Não fossem seus personagens de carne e osso com nome, alcunha, sobre-nome, parentesco ou amizade de uma ou outra vivalma lá do vilarejo, tudo não passaria de ficção ou prosa inventada. Por res-peito e dever de ofício nos privamos de identificar os personagens em questão, com seus nomes de batismo. Para tecer os fios desta trama do destino usaremos, portanto, nomes fictícios.
Precavendo-se das som-bras da dúvida e de olhares dos incrédulos e desconfiados, que poderiam taxar de pura invencionice a nossa história, tivemos o cuidado de nos amparar nas fontes fidedignas de uma testemunha ocular. Entrevistamos o "Batista"( aquele lá do "Bar do Batista", no Bairro Boa Esperança): um conterrâneo e contemporâneo, que na mesma época do acontecido residia lá na vila do Funchal. Ele nos revelou em detalhes o desenrolar dos fatos, enredados em não mais que em um só, fortuito e inusitado dia. Depreende-se de seu depoimento que se tratava de pessoas simples, sem um pingo de maldade no coração, tendo por isso, tudo transcorrido com a mais das inocentes naturalidade.
A CATIRA
Então é verdade que o "Tõe Biboca" catirou a própria mulher? - perguntei de cá do balcão do Bar do Batista. Não foi preciso mais que um pulo pra ele arrancar do fundo da memória as cenas e imagens que no seguido passou a me contar:
"Nessa época eu tocava um buteco no "Gordura" e eles eram da freguesia, um, inclusive, era sobrinho. O Zabilo morava com a mulher lá na Fragata e o Tõe, na beira do Indaiá. Os dois eram primo primeiro. Um dia o Tõe, que gostava de uma cachaça, foi, montado na sua égua, visitar o primo, lá na Fragata. Chegando na casa, prosa vai, prosa vem e o Tõe resolveu fazer uma proposta esquisita pro Zabilo: catirar a mulher e em troca de sua égua parida. O Zabilo que tava precisado de um animal pra serventia acabou se interessando na proposta, mas colocou uma condição: "eu catiro a minha mulher mas o menino tem que ir junto" (o menino filho do casal.) Conversa vai, conversa vem, e o negócio foi fechado. tudo nos conformes, e a muié do Zabilo, que até achou tudo meio engraçado, não discordou, pouco se incomodando com a troca de marido. Ela então pegou o filho e seguiu viagem para a nova casa lá na beira do Indaiá. Eu fiquei sabendo do acontecido no mesmo dia: Como o "Gordura" era caminho, eles passaram, os três, no meu buteco e o Tõe me contou da catira que havia acabado de fazer. Essa catira aconteceu na época doa URV, você se lembra? foi em 1992, 93...
E a catira não foi desfeita?
Eles ficaram bastante anos juntos. O menino foi criado como se fosse filho do Tõe. Tocavam a vida como uma família normal, na maior naturalidade. Já os moradores da vila achavam tudo aquilo muito engraçado, e não deixavam de fazer uma piadinha quando os três chegavam juntos. Uns tres anos depois ele resolveu devolver a mulher com o menino: " Vou te devolver a mulher". Alguns anos depois o Tõe biboca morreu afogado ao tentar atravessar o rio Confusão durante uma cheia.
"Ali no Gordura", vai o Batista terminando a conversa para atender um freguês, "tem muito caso que a pessoa conta e ninguém acredita, como aquele do duelo no meio da praça e que os dois inimigos acabaram morrendo um com o tiro do outro". Mas essa é uma outra história.