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    Terça, 25 Abril 2023 22:25

    Das vantagens de ser surdo

    Há uma historinha a respeito.

    Passeava pela floresta um bando de pererecas, saltitantes e tagarelas. Súbito, cinco despencaram num buraco. As outras chegaram à boca do poço gritando: subam pelas beiradas! Tentaram, desesperadas, por uma hora ou mais, as de baixo se esforçando, as de cima incentivando. Chegou um momento em que aquelas desistiram, e estas mudaram o discurso: não vai dar, desistam! Cansadas, ficaram quietinhas. Exceto uma! Que continuou e se esforçou tanto que, de repente, vupt, ela atingiu a borda e saltou para o chão seguro da floresta. Foi uma festa, todas perguntando como foi. Mas a rãzinha não respondia. Até que descobriram: ela era (ou fingiu de) surda!

    Moral da história: escutar os outros deixa no buraco 80% da população! Os 20% que não escutam se salvam.

    Claro, estamos usando linguagem figurada. A própria historinha é figurada. Não é possível contestá-la, dizer que é mentira ou feique. É inventada com o propósito de transmitir uma ideia, sem pretensão de ser “a verdade dos fatos”. Assim, pode-se dizer que ela é mais poderosa que a linguagem jornalística, que esta sim tem compromisso com os fatos. Uma empresa de rádio, jornal ou tevê para ter “credibilidade” precisa “zelar pelo bom nome”, deixando bem separadinhos os “fatos” e as “opiniões”. Se o ouvinte/ leitor/ telespectador duvidar, pode checar o noticiado com o real.

    Mas na “mídia moderna”, que inclui a “hegemônica” (globo, sbt, etc.) e todos os canais individuais no iutube, feice, instagram, zape, tornou-se impossível separar o acontecido do inventado. Solta-se, por exemplo, a “notícia”: hoje pela manhã foi visto nos céus de São Gotardo um boi voando. A frase tem todas as marcas do jornalismo profissional. Pode-se até “provar o fato” fotografando um boi de um ângulo tal que ele “parece” voar. E chamar a polícia para interrogar o “repórter”: verdade? Ele pode negar, dizer que foi equívoco, já até “apagou” do seu canal. Sim, mas a “notícia” continua nas cabeças de todas as rãzinhas que escutaram, e ficam olhando para o céu procurando o boi. Outros blogues e saites replicam tanto que a mentira se torna fato histórico.

    Até São Tomás de Aquino (segundo me “contaram” os padres do seminário onde estudei) caiu nessa feique. Seus colegas resolveram fazer uma “zoação” com ele. Combinaram! Um desceu correndo a escadaria da biblioteca onde ele lia, gritando: “vem, Tomás, tem um boi voando lá fora!” Ele, doutor da igreja, saiu feito louco para conferir. Claro, não viu nada, e os monges “não tão cultos” fizeram farra às custas dele. Mas receberam o troco. O sábio deu neles um “tapa com luva de pelica”, como se diz na gíria: “Acho mais fácil acreditar que um boi voa do que um monge mente”. É boa a lição, mas infelizmente atinge só 20% das cabeças!

    O episódio merece análise. Tomás acreditou? Conhecendo os colegas que tinha, pode-se supor que não. Inteligente e rápido na interpretação de texto, entrou na “jogada”, fingiu acreditar, olhou, fez cara de decepção, e, ao ver os “zoadores” se divertindo às suas custas, sapecou-lhes a lição de moral. Que vergonha, um monge mentiroso!

    Donde podemos concluir que a mentira, modernamente chamada de “feique”, é antiga e engana até santo. A diferença para hoje é que ela foi potencializada pela internet com cada iutúber podendo livremente inventar suas “notícias”, compartilhá-las mil vezes, e, na hora que a polícia chega, deletá-las da tela (mas não das cabeças que já as “curtiram”). Assim vai-se formando uma população de crentes em bois voando. Estima-se que 80%! O que não é de todo mal, porque muitas “notícias figuradas” são bem divertidas. Outras, porém, destroem reputações e almas! A vantagem é que, querendo, todos podem ficar surdos (ou fingir de).

     

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