A cultura brasileira é rica em exemplos de pessoas que se tornaram mais conhecidas por seus apelidos do que por seus nomes de registro. Veja alguns: Garrincha: Manuel Francisco dos Santos; Silvio Santos: Senor Abravanel; Fafá de Belém: Maria de Fátima Palha de Figueiredo; Tiririca: Francisco Everardo Oliveira Silva; Pelé: Edson Arantes do Nascimento.
Para além da fama, o Apelido é recurso poderoso seja nas grandes cidades ou nos vilarejos. Aqui em São Gotardo mesmo poderíamos citar mais de uma centena de exemplos de pessoas que são identificadas por um apelido, e não por seus nomes de registro em cartório. Abacaxi, Borracha, Risada, Ticumcum, Cheirinho, Zé moreira, Tião flamengo... A lista é extensa.
A partir desta edição, o Jornal Daqui vai adentrar neste universo onde impera o poder e a criatividade da cultura humana, da linguagem oral. O propósito desta série de reportagens é de decifrar a gênese, as associações e a perspicácia na curiosa tarefa de rebatizar os Joãos, Marias e Antônios da vida. Cada um tem sua história para contar.
Ainda que às vezes, a contragosto, o apelido é pra vida toda; não tem jeito. A grande maioria, no entanto, não tem do que reclamar; se pudessem, mudariam em cartório seu nome de registro, adotando de bom grado aquele que foi escolhido não pelos pais, mas pelos amigos e conhecidos.
Nesta primeira edição vamos conhecer o Antônio Eustáquio Rodrigues, digo, o Geleia.
Seu nome de verdade, como é que é? Antônio Rodrigues.
Mas ninguém te conhece por esse nome. 99% do pessoal me conhece por Geleia.
Como surgiu esse apelido? Eu era ainda criança, e minha mãe fazia geleia para vender, e eu buscava os pés de vaca no Mário manezinho na antiga Rua São Paulo, ali na rua da Igreja, aí, eu passava na esquina e tinha o João do Geraldo Lopes da mercearia, que ficava no caminho, e ele começou a me chamar de Geleia, e aí pegou. E eu fui crescendo. Eu tinha uns 7, 8 anos de idade.
Então é desde novinho que você tem esse apelido... Quando fui crescendo, pegava uma lata dessas de 20 litros com as geleias fabricadas pelos meus pais e descia lá para baixo, para rodoviária pra vender. Não era tão cheia, que eu era pequeno, mas levava umas 8 geleias. Vendia tudo, voltava e buscava mais. E aí pegou o apelido de Geleia pro resto da vida. Nunca mais ninguém me chamou de Antônio, que é o meu nome de verdade, né. É Geleia.
Antigamente o povo comia mais desse doce que hoje, né? Mas antigamente era boa, não era industrializada. Você batia na mão até ela ficar branquinha. Eu me lembro de meu pai e minha mãe batendo aquilo na mão; esfriava com uma colher grande de madeira. E batia na mão até chegar e pôr na lata para enformar.
A geleia é feita de pé de vaca, então? É. Aí, cozinha os pés, mas primeiro põe eles no fogo para queimar os pelos e arrancar as unhas. Depois lava bem lavadinho, pica tudo, põe na água, cozinha bem e coa. Ah, e aí vai mexendo e mexendo; não é negócio fácil de fazer, gasta tempo, leva uns 3 dias. Tem que se preparar, tem que tirar os ossinhos tudo, né? Que é trabalhoso, é.
E o apelido ficou por toda a vida... Conhece muito mais fácil, todo mundo sabe né? Ninguém fala: “chegou o Antônio”, ninguém sabe que é o Antônio. Agora, Geleia só tem um. Não tem jeito de confundir.
É verdade. E depois você seguiu a vida e foi caçando outro serviço... Isso. Eu fui crescendo, e parece que eu fiquei com vergonha de vender geleia na rua... Aí eu fui trabalhar lá na mercearia do 'João do Geraldo Lopes'. Depois de lá, segui trabalhando em vários lugares.
Você tem uma relação forte com o comércio, não? A vida inteira. São mais de 40 anos de comércio.