Percorrer os caminhos trilhados por dona Dôrfa nos ajuda a compreender nuances de um passado que passa ao largo, à margem da história oficial. Isolados de tudo e de todos, residiam no mais fundo dos fundos da sertania de Tiros, numa corrutela denominada Capão preto. Suas primeiras lembranças reconstituem a saga de uma família que, só com a roupa do corpo, percorreu léguas e léguas a pé de um sertão a outro, até chegar a seu porto seguro, um vilarejo denominado Espinha de Peixe, e por lá ficou até os dias de hoje. Nada de cidades, de progresso, de vida corrida. De pele negra, tinha como herança de seus pais e avós, um passado de luta e precariedade permanentes: assim era naqueles tempos.
Mas não se engane, Dona Dôrfa é senhora do tempo, e soube como ninguém driblar as mazelas da vida. Não aprendeu a ler ou escrever, mas ensina: “amizade nunca sobra, meu filho, nunca é demais”. Amizade, esse bem precioso, é farto nos baús de Dona Dôrfa. Hoje, ela é dona de sua vila, e todos lhe veem fazer reverência, ouvir suas histórias e seus conselhos. Sua nobreza foi sendo lapidada ao longo de décadas, de gestos simples, daqueles quase sem importância, que não pedem reconhecimento ou elogios.
Sua idade foi confirmada pela certidão de Batismo, encontrada na Paróquia de Tiros – naqueles tempos, era mais importante que a própria certidão de nascimento. Seu nome completo: Lindolfa Maria Bernardes.
Acompanhado de uma de suas amigas, Joelma me fez as honras das apresentações; chegamos à sua casa numa tarde ensolarada, e lá vinha ela com um feixe de lenha na cabeça. Nos convidou a entrar, entre um cumprimento e outro. Depois, a prosa seguiu livre e desimpedida. Pensei comigo: o que perguntar a uma senhora de 103 anos de vida, e que parecia ignorar a própria existência do mundo, deste, que conhecemos e acompanhamos na tela da tv ou do celular?
Perto de completar 103 de vida, agora em abril, sua memória é límpida como um livro aberto, e nos fala de mundo distante demais, no tempo e no espaço. Relembra brincadeiras de criança e de quando foi levada a uma sala de aula pela primeira vez – naqueles tempos ermos não havia escola por perto, só sala de aula -, e não gostou. Apesar disso, aprendeu as artes da aritmética, do raciocínio lógico: “ninguém me passa pra trás não, menino; não tive escola, mas minha mãe me ensinou a ser uma pessoa educada” Isso bastava para dona Dôrfa.
Falando em saúde, sua vida rural fincou distância dos compostos químicos e agrotóxicos da vida industrializada. Sua comida sempre foi a base de gordura de porco e nunca foi de vida sedentária. Toma um comprimido para controlar a pressão arterial, e só.
Dona Dôrfa, viúva, não teve filhos; hoje, a vila é a sua família. Sua sobrevivência era mantida graças a suas artes com o algodão. Aprendeu a tecer fios ainda criança – ao longo da entrevista nos deu uma breve aula com a 'Carda' e a 'Roda de fiar'. Também prestava serviços na vizinhança.
Dona Dôrfa foi assim, escapando das armadilhas da vida, sobrevivendo entre uma dificuldade e outra. Covid? Ela me disse que nunca viu nada igual ao longo de seus 103 anos de vida. Não contraiu o vírus, e segue hoje, firme e forte tecendo com primor os fios de sua vida.